CARTA NÃO ANÔNIMA


CARTA NÃO ANÔNIMA

Luna, 15 março de 2.506 DC.

Caro amigo KK-1000, espero que aí em Júpiter o tempo esteja ótimo. Aqui em Luna continuamos enfrentando problemas com os terráqueos. Esses favelados não se emendam. Ontem voltei de uma breve visita ao Brasil, fui consultar in loco os arquivos genealógicos de meus antepassados, estão concentrados numa pequena cidade do litoral no antigo estado de São Paulo.
Amigo, ainda não consegui entender como os terráqueos conseguiram destruir por definitivo o seu habitat. A cidade que visitei, uma das primeiras fundadas naquele país foi um exemplo do descaso que reinou no planeta Terra.
Consultando os arquivos holográficos do passado fiquei abismado com a beleza natural da região. Montanhas com nuances de verde de tirar o fôlego, um majestoso rio de águas piscosas, fauna e flora deslumbrante, uma infinidade de espécimes de pássaros. Comparando com a nudez e a aridez de Luna vi o que perdemos.
E saber como tudo começou foi chocante. Constam nos arquivos que a tal cidade era pacata, um local que vivia de pesca artesanal, turismo ecológico e religioso, povo hospitaleiro, festeiro e humilde. Naquela época distante, final do século XX, algo ocorreu na localidade. Uma coisa insignificante a qual os habitantes não deram a mínima atenção.
Devo lembrar para melhor entendimento que naqueles dias, as pessoas que optavam por uma melhor qualidade de vida, segurança e sossego, buscavam as pequenas cidades para viverem e a cidade a qual me refiro possuía todas essas qualidades e muito mais.
Que maravilha devia ser morar naquele lugarejo! A decadência começou quando bandos de pedintes (pedinte eram pessoas que optavam por nada produzir. Fugiam do trabalho, não tinham asseio e acreditavam que as demais pessoas produtivas deviam sustentá-los) resolveram se apossar de pontos turísticos do lugar. Os turistas foram rareando, pois eram achacados descaradamente pelos tais pedintes e como turistas presa sobremaneira a tranqüilidade, o turismo desapareceu.
Junto com os tais mendicantes vieram às drogas, o lixo acumulado, a insegurança, as doenças e todas as pragas que acompanham a decadência. As autoridades entretidas com o mando faziam vistas grossas aos problemas básicos da população. Reclamações não eram aceitas e quem ousasse criticar era tido e mantido como inimigo, o que tornava difícil o convívio social. Os comparticipes do poder possuíam segurança plena e casas monitoradas por câmaras.
Com o passar do tempo e o descaso generalizado, as esperanças de melhora foram minguando, os rios assorearam, os peixes acabaram, a religião foi desaparecendo e a escuridão moral que acompanha a decadência se apossou do local.
O que estou relatando ocorreu praticamente em todo o país. Ninguém queria estudar, crianças e adolescentes faziam o que bem queriam e por lei não podiam nem sequer ser advertidas, os professores eram impedidos de corrigirem os abusos, a natalidade em jovens despreparados produzia pais relapsos e omissos. Os governantes criaram mecanismos de domínio pessoal chamado “bolsas” e o trabalho produtivo foi esquecido definitivamente.
Os exemplos a serem seguidos eram os artistas, jogadores e modelos. A corrupção, a ganância, a falta de ética e a imoralidade eram regras a serem aplaudidas e copiadas. Com as conquistas da astronáutica, os poucos que estudavam e prezavam o humanismo abandonaram a Terra que agonizava, criaram núcleos habitacionais em diversos planetas do sistema solar e tentaram levar uma vida mais digna.
Foi realmente uma pena termos perdido a Terra, mas como raça saímos lucrando, hoje habitamos tantos mundos e aprendemos a duras penas nossa lição, a de que somos apenas aprendizes de jardineiros nesse universo que nos foi ofertado para ser compartilhado com gratidão.
Em agosto conversaremos pessoalmente, pois estarei em Júpiter participando da grande festa em homenagem ao protetor do sistema solar. Descobri que a imagem original foi encontrada em uma praia deserta por dois índios em 1647 e levada para a cidade que visitei. Um abraço... Paz e prosperidade. ID-100T

Gastão Ferreira

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