o cavalo branco

Isto se deu pouco antes daquele tempo da tromba d’água
do primeiro dia do carnaval de 80,
na enchente do rio Grande, que hoje o povo chama de São Lourenço,
na chuvarada do janeiro a março,
no tempo que o capim-gordura chuviscado tá brilhando
e cortá capim pros coelho era puxar o carrinho de madeira
pela estradinha que passava pelo pasto do cavalo branco louco
e ia pro bananal do Néca.
Lá tinha capim bom.
Capim-gordura que o Misterbasco comia.
Estradinha pequena de trator...enlameada.
Mas e o cavalo branco louco?
Que naquele pasto ficava,
Que ninguém montava,
era saci...abelha...
ou só o tempo que mudava?
Diz que em dia de trovoada
os bichos ficam tudo de cabeça virada.
Só que o cavalo branco era diferente,
parecia que tinha sempre
uma tempestade zunindo na sua mente.
Mas pra molecada,
barulho de rio,
cerca tombada,
tudo vira brincadeira,
até o rastro do Mão-Pelada.
E o cavalo na estrada? Surpresa não esperada
Só foi avistar a gente
que o bicho veio em disparada de repente ...
querendo pegar.
No fundo o Néca gritando
e a gente de virada voltando
querendo escapar
Tim na frente fugindo
eu e o Mangalo seguindo...
tentando voltar.
Tim pra trás olhando,
o mangalo avistando.
Lá no fundo o cavalo a chegar

Em Jaraçatiá nesta época se fazia tijolo...
Seu Didio, Vô de finado Ademir...
Olaria de braço a braço. Artesão.
...e se criava gado pro finado Pettená.
Seu Juvenal...Têco...Zé Leitêro,
seus filhos: os boiadêro.
O cavalo branco não podia ver criança
que corria...corria...

Tim voltando pra puxar o Mangalo
Eu agora na frente disparado.
O carrinho que pai fez à mão
só pra gente cortar capim pros coelho?
Já tinha ficado de lado.
Mangalo e Tim na frente me passando
eu cada vez mais pra trás ficaando
o cavalo branco chegando bufaaando
ele a gente quase pegaaando
Tim, Mangalo soltaaando

pacatác...pacatác...pacatác...pacatác... pacatác...

o cavalo sapateia o som no vento,
traz à mente outro tempo,
como disse Tia Gula: tempo de roça de milho e mandioca
onde o sapateado do gado caçava alimento na terra do povo pobre
deixando rastros de fome na barriga das crianças,
e a família, coitada, tendo que ir embora, migrante,
deixando pra trás, pro fazendeiro, os ossos dos seus enterrados.
Só que o medo é uma coisa que faz a perna correr
corre igual ao pensamento que voa
mas o medo...o medo das coisas
e ele também traz o respeito que dá sabedoria.
É aquela coisa, se não acredita, não acredite, mas não duvide.

...pacatác...pacatác...pacatác...

Tim de novo voltando
prá puxar o Mangalo
e depois o Cavalo.
Tim e Mangalo me passando
...depois Eu e a cerca. A cerca. A cerca!
acercaacercaacercaacercaacercaacerca acerca
pois não sei como ... parece que uma mão abriu
um pedaço da cerca no nosso olho na horinha certa
e puxou a gente pra debaixo dela
ela igual um buraco no nada, uma porta...uma passagem
ela que vinha acompanhando a gente
ali do nosso ladinho o tempo todo
dês de lá de trás
ela que só agora a gente viu.
Porque só agora o nosso olho se abriu pra ela?
Nóis igualzinho galinha correndo na frente de carro
E só foi a gente a cerca passar
e o cavalo branco louco chegá assombrado
Bufando...Bufando...
querendo pegar...querendo pegar...querendo pegar...
bem enciminha da nossa cabeça
por cima da cerca e do mato.
O cavalo branco louco que criança pegava.

Passados tantos anos
Disso tudo fica aquela pergunta com aquela certeza
O cavalo branco e Jaraçatiá se foram com o tempo?
Ou se encantaram naquela casa velha da D. Ogênea,
A Dona dos remédio de finado Leló?

Déco
Araraquara 14-08-2000
(do livro Vento Caminhador)

Nenhum comentário:

Postar um comentário