Hoje baronesa, amanhã condessa

(Conto, por Roberto Fortes)

Os historiadores garantem ser verdadeiro este episódio, conquanto sejam reticentes em apresentar documentos comprobatórios. A darmos razão a certo iconoclasta inglês, não devemos acreditar num historiador; ele sempre falseia a verdade. Pela mesma razão que não devemos acreditar num padre; mas deixemos este quieto em seu canto, que já tem trabalho de sobra em seu bom combate contra o mal. Fiquemos apenas com os historiadores, dos quais Heródoto foi o primeiro; e devemos acreditar nos seus relatos tanto quanto acreditamos que a Marquesa de Santos foi uma puritana.

Diz a crônica que, no mês de julho de 1825, a Vila de Xiririca recebeu a visita de Sua Majestade o Imperador D. Pedro I. Muitos tem se perguntado – e não lhes pode ser negado o espanto – o porquê de o Imperador ter cismado em visitar a Vila de Xiririca. Neste ponto há divergência entre dois ilustres historiadores. Varnhagen assegurou, pelo hábito da Ordem de Cristo, do qual era cavaleiro, que o motivo da visita estava ligado aos interesses estratégicos do Império do Brasil em evitar a guerra contra a República da Argentina. O Imperador não se deslocaria para um lugar distante e de difícil acesso se não se tratasse de relevante assunto de Estado. Já Capistrano de Abreu, embasado em conjeturas um tanto discutíveis, afirmou que o motivo só poderia estar relacionado ao interesse do Estado em assegurar a permanência dessa parte da Província de São Paulo, ambicionada pelos argentinos. (Por lapso do cronista, não foi mencionado que esse episódio se desenrolou – ou teria se desenrolado – ao tempo da Guerra da Cisplatina).

– É nada! O Imperador veio pra cá porque estava de chamego com a Baronesa de Xiririca! O finado marido, que nunca teve influência na Corte, só virou barão porque o Imperador sempre arrastou as asas para a futura baronesa...

– O Barão de Xiririca decerto deve ter desconfiado das intenções do Imperador. Mas, macacos me mordam! Ainda se a baronesa possuísse os encantos da dona Domitila...

– Mesmo que desconfiasse, um título de barão limpa a reputação de qualquer um.

– Até de esposo ludibriado... O Imperador e comitiva ficaram hospedados no solar do barão?

– Sim. Mas o Imperador não veio com uma comitiva. Veio somente com o seu secretário, e também alcoviteiro, Francisco Gomes da Silva, de alcunha o “Chalaça”.

– Os jornais oposicionistas da Corte devem ter deitado e rolado, em especial, a “Aurora Fluminense”, do Evaristo da Veiga, pois não?

– Isso eu não sei. Não leio a imprensa da Corte, só os bandos reais que são afixados na porta da Igreja Matriz.

Os detalhes dessa obscura visita do Imperador D. Pedro I à Vila de Xiririca, por mais que tenham sido esmiuçados, não deixaram registros precisos. No entanto, Antônio Paulino de Almeida encontrou umas anotações do secretário “Chalaça”. Essas notas, escritas com umas letras corridas e nervosas, ficaram registradas numa caderneta, esquecida sob o colchão da cama na qual dormiu o secretário. Caderneta posteriormente encontrada por uma das escravas da casa, que conseguiu a alforria misteriosamente.

– E além da carta de alforria, eu quero que sinhá me dê aquele vestido de baeta que o Imperador deu pra sinhá...

– Isso é um absurdo! Jamais, sua negra atrevida!

– Sinhá se aprecate, que eu conto tudinho pro sinhô barão...

– Leve também este colar de pérolas que Pedro tirou do porta-jóias da Imperatriz, minha boa e dedicada mucama...

– Sinhá é mermo um anjo de bondade! Que Deus nosso sinhô conserve sinhá por muitos anos...

Paulino de Almeida nunca esclareceu como essa caderneta veio parar em suas mãos. Talvez a tenha encontrado numa prateleira esquecida do Arquivo do Estado, onde trabalhou por décadas. Essas anotações, caso sejam fidedignas, parecem ser bastante esclarecedoras.

“14 de julho de 1825 – Depois de muitos dias sacolejando por estas estradas abomináveis da Ribeira, que mais se assemelham a picadas de bugres, chegamos à Vila de Xiririca. Bem conheço os desvarios do meu senhor, mas, francamente, trocar os encantos da bela Domitila por um roceira enfeiuscada e boçal como a Baronesa de Xiririca, só pode significar que o meu senhor está desvairado. E, o que é pior, ainda se expor a uma situação dessas. Os republicanos, segundo me informou o serviço de inteligência do Império, pensam em dar um golpe de Estado e, vejam só, exilar o meu senhor na Vila de Sant´Anna de Yporanga, mais precisamente na Gruta do Monjolinho. Até que não seria de todo mal. A água fria da gruta talvez lhe restitua o siso perdido.

“16 de julho – A despeito do ar disfarçadamente ingênuo, não creio que o barão seja de todo desprovido de senso de observação. Percebo que ele está a desconfiar. A escravaria da casa põe-se a cochichar pelos cantos sempre que o meu senhor fica a sós com a baronesa. Ouvi um negrinho comentar com outro que, de madrugada, quando o sinhô está ferrado no sono, o meu senhor e a baronesa discutem altos negócios de Estado no quarto de hóspedes.

“19 de julho – A situação está ficando perigosa. Esse maganão do meu senhor não se emenda, mesmo com as advertências que ousei lhe dar. Pois veja só que desajuizado: convidou a baronesa para ir com ele se refrescarem nas águas da Ribeira! O barão, naturalmente, concordou, e até expressou no rosto simulado um sorriso de contentamento. Um negrinho da casa me jurou pelas chagas de Cristo que ouviu o seu sinhô falar sozinho, enquanto esfregava as mãos:
“– Minha valiosa esposinha! Vá-me baronesa e volta-me condessa!...”


Terminam aqui as anotações do secretário “Chalaça”. As demais páginas parecem ter sido arrancadas. Alguns estudiosos acreditam que foram aproveitadas por Paulo Setubal em seu livro “As Maluquices do Imperador”.
(Esta é uma obra de ficção)

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