Manhã de quarta-feira.
Alan estava eufórico. Afinal conseguiria sua tão sonhada viagem para o Japão, através de um intercambio. Seria neste fim de semana. Não conseguia se conter de tanta felicidade. Mas coisas estranhas começaram a acontecer.
Ao preparar seu café da manhã, por acidente, deixou a caixa de cereais cair na mesa e derrubar quase todo o seu conteúdo. Na afobação de tentar aparar a queda, esbarrou na caixa de leite e a derrubou no chão. Não se importou muito, pois havia só um pouquinho. Iria se atrasar. Resolveu limpar toda a bagunça antes. Retirou primeiro a louça e os talheres, quando voltou para limpar os cereais, parecia que havia letras nos espaços vazios, antes ocupados pelas louças. Parecia a palavra “NÃO”. Não ligou muito, juntou tudo e foi limpar o chão. Olhou o relógio, não daria tempo. Pegou a mochila e saiu. No chão, o leite escorreu pelo vão entre os pisos e formava a sílaba “VA”.
O ônibus demorou a chegar na escola devido a um acidente de trânsito. Um sedan bateu em um caminhão de tubos de aço. O motorista morreu na hora com um tubo que atravessou o pára-brisa.
O bizarro foi o sangue espirrado no vidro traseiro do sedan, que pareciam formar as palavras “NÃO VÁ”.
Alan não viu. Não queria olhar. Era muito sangue para começar o dia.
Na escola, tudo transcorreu bem. A euforia continuava e a visão do acidente não abalou sua alegria. Recebia parabéns de vários colegas que sabiam da sua viagem.
Durante a aula de língua portuguesa, o professor pediu que acompanhassem a leitura de um texto no livro de exercícios. Parecia que sua mente lhe pregava peças pois as palavras “não”, “vá”, “agora”, “ainda”, “desista”, ficavam dançando em seu campo visual, como se estivessem em negrito, se destacando do texto. Tentou se concentrar e tudo voltou ao normal. Talvez estivesse impressionado por causa do acidente.
Quando toca a campainha de fim de aula, ele espera os outros saírem enquanto arruma suas coisas. Já estava de saída quando um dos vidros da sala se espatifa.
Assustado corre até o canto da sala com mais alguns colegas para ver o que tinha acontecido. Um pobre beija flor havia atravessado o vidro. Ainda se debatia em meio aos cacos.
Já em casa, achou melhor não comentar nada, pelo menos o da escola, pois o acidente da rua seus pais já sabiam.
Tarde de quinta-feira
Alan estava andando de bicicleta com os amigos quando resolveram que queriam dar uma festa de bota fora para Alan. Seria na sexta à noite, na véspera de sua viagem. Ele achou a idéia legal e aprovou.
Manhã de sexta-feira
Já na escola, Alan não se continha de alegria, não via a hora de o sábado chegar. No intervalo “recreio”, Miriam, uma mestiça japonesa veio falar com Alan. Era esquisito. Ela era sempre tão tímida, só conversava se falassem com ela. Talvez queria se despedir dele e dizer que não iria a festa.
- Alan gostaria de falar com você um instante.
- Pode falar Miriam – respondeu Alan todo simpático.
- Sabe... não é fácil pra eu falar abertamente assim mas... eu não ficaria tranqüila se não te disse isto.
- Pois então diga.
- Adie sua viagem. Não vá no sábado. Vá no domingo. É mais calmo.
- Não. Estou aguardando isso há tanto tempo, não vou esperar nem mais um dia.
- Eu falo sério. Andei tendo sonhos horríveis, mesmo antes de saber de sua viagem.
- Isso é besteira – rebateu Alan – Você deve estar impressionada com alguma coisa, talvez um filme que você tenha assistido.
- Não Alan, porque eu inventaria alguma coisa assim, sabendo que é o seu sonho. Não estou pedindo para você desistir, apenas adiar um dia.
- Já está decidido. Vou no sábado e pronto.
Deu as costas para Miriam e saiu. Ao passar pelo espelho de corpo inteiro do corredor não viu o seu reflexo. Quando seu cérebro processou essa informação, voltou correndo para olhar o espelho. Na verdade, foi só uma ilusão, seu reflexo estava lá. A conversa com Miriam e a expectativa da viagem estava gerando um abismo emocional no qual ele tinha que se controlar.
Tarde de sexta-feira
Toda a turma da escola estava na festa, inclusive os professores. Por onde passava recebia tapinha nas costas e parabéns. De repente, a pessoa que ele menos esperava estava lá também. A Miriam. Ela estava com uma blusa de mangas curtas com um longo decote nas costa e saia acima dos joelhos, o que era muito incomum.
“ – Provavelmente, estaria ali para tentar dissuadi-lo da viagem.” – pensou Alan.
Ela havia parado na bancada de bebidas e pegou dois copos de refrigerantes. Sem que Alan percebesse, ela despeja um pó em um dos copos e vai em sua direção.
- Se veio aqui para me fazer desistir, está perdendo seu tempo porque...
- Calma, calma. Só vim para lhe desejar boa viagem.
- Só isso? Sem discurso?
- Sem discurso, prometo. – dizendo isso entregou um copo para Alan e outro colocou na mesa e cruzou os dois dedos indicadores em frente aos lábios como se, selando um juramento.
Retomando seu copo ela levantou à altura dos olhos e disse:
- Um brinde a você Alan. Que você desvende a magia do oriente.
- Tin-tin – respondeu Alan tomando todo o refrigerante em um gole só.
- Boa viagem. Tenho que ir agora.
- Valeu por ter vindo.
Após três horas de festa, Alan se sentia cansado e meio zonzo, e disse aos colegas que voltaria pra casa porque teria que acordar cedo e seus pais haviam saído.
Quando estava na cama, demorava para dormir e quando pegava no sono, acordava com pesadelos. Já era de madrugada quando conseguiu ter um sono tranqüilo.
Noite de sábado
O telefone toca insistentemente. Alan levanta meio sonolento, olha pela janela e percebe que é noite ainda e atende o telefone.
- Alô. – responde com voz pastosa.
- Graças a Deus, você está aí ainda, por que não atendeu o telefone antes. – disse Emerson, seu colega de escola.
- Como assim, “aí ainda”? Nem amanheceu.
- Acorda cara, já é sábado, você perdeu o vôo, graças a Deus.
- O que você está dizendo?
- Liga a televisão – disse Emerson
Alan tateia a cama em busca do controle remoto e liga a tv no RecordNews, bem no momento que o repórter dá as noticias.
“... estamos aqui no aeroporto, na sala de controle aéreo e a nota que foi divulgada para a imprensa é que o vôo que saiu do Brasil para o Japão caiu no mar do Japão, na área conhecida como Triângulo do Dragão, que é parecido com o Triângulo das Bermudas do oriente. É muito provável que ele tenha caído na área da Fossa das Marianas, a região mais profunda do oceano, podendo chegar a até 11 km de profundidade. Especialistas acreditam que não houve sobreviventes. O Triângulo do Dragão é conhecido por vários desaparecimentos de navios e aeronaves que ...”
Alan desliga a televisão e fica pensando em Miriam.
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Em memória das vítimas do vôo 447 da Air France.
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