Assim rezavam as escrituras

(Conto, por Roberto Fortes)


Solitário, ele olhava para a lua, sentado no banco do jardim. Na pracinha da cidade esquecida, ninguém passava por ali àquela hora. Silêncio absoluto. Talvez já fosse meia-noite, ou mais. Para ele a hora era o de menos, nada tinha a fazer; apenas admirava a lua, que naquela noite estava mais bela do que nunca.

Seu nome estava gravado na pulseira, dourada e habilmente lapidada. Aparentava uns vinte anos. Alto, magro, cabelos lisos repartidos ao lado, escorregavam do nariz grossos óculos, que denunciavam miopia avançada. O luar, incidindo em seu rosto pálido, conferia-lhe aspecto inquietante. Vestia enorme jaqueta, quem sabe para disfarçar a excessiva magreza, pois não fazia frio naquela noite.

Em certo momento, levantou-se do banco e, sempre a olhar para a lua, deu voltas pela praça. Parou em frente a uma casa assobradada, que se destacava pela sua imponência. Deixou-se ficar olhando para a casa, enquanto assoviava uma música indistinguível, mas logo demonstrou cansaço. Sentou-se na beira da calçada, sem tirar os olhos da casa. Vez ou outra, olhava para a lua, talvez para se certificar de que ela ainda estava em seu devido lugar.

Pelas frestas da janela principal, no andar de baixo, notou uma claridade. Alguém estava acordado àquela hora. Sorriu, quando veio-lhe à mente a idéia de que ela estava acordada. Levantou-se, aproximou-se da janela. Parecia perturbado. Fez que ia bater de leve na janela. Freou o movimento, tinha medo. Não, não era medo, quem sabe fosse um sinal de respeito pela intimidade alheia, afinal passava da meia-noite.

Crispando os dentes, mandou o respeito às favas e bateu na janela. Esperou alguns segundos e tornou a bater. Nenhum sinal. Por que ela não abria a janela, estaria dormindo? Mas, e a luz acesa, esquecera de apagá-la? Se estivesse no quarto, certamente estava acordada e ouvira suas batidas. Sim, ela estava no quarto, não queria abrir a janela, talvez receasse; mas receio, por quê?

Começou a se aborrecer. Julgava-se uma criança naquela situação. Bateu mais uma vez e esperou. Dez segundos, um minuto, uma hora – chegou a perder a conta do tempo que esperou. E ela que não abria a janela; por quê? Tinha certeza de que ela estava no quarto, escondida atrás da janela. Teria medo de abri-la? Sabia que estava encostada na janela, sentia sua respiração ofegante, temerosa; mas o temor, por quê? Não lhe queria mal; ele a amava. Fazer-lhe mal? Nem pensar; não a ela.

Súbito, a janela se abriu.

O interior do quarto estava vazio, parecia vazio. Ela se escondera? Não, ela abrira a janela, deveria estar por ali. Teria medo de aparecer? Mas, o medo, por quê? Não lhe queria mal. Sim, ela estava com medo, tinha certeza (ora essa, por que temê-lo se ele a amava?).

Num movimento rápido, pulou a janela, entrou no quarto e começou a procurá-la, debaixo da cama, atrás da janela, dentro do guarda-roupa. Olhou todos os cantos, todos os lugares, nada de encontrá-la. Não a via, é certo, mas sentia que ela estava ali; a janela não se abrira sozinha, sentira sua respiração colada à janela. Sim, ela estava ali, em algum lugar, nalgum canto, disso ele tinha certeza, a mais absoluta e convicta certeza.

***

Ficava olhando para ela.

Seu nome? Madalena. Lera esse nome pela primeira vez na Bíblia, criança, nove, dez anos; e esse nome se gravara na mente. Esse nome, por quê? Outros, por certo, eram mais bonitos. Não se importava, para ele, era o mais belo do mundo, condizente com ela, o ser mais lindo que já nascera naquela cidadezinha sem nome, esquecida nalgum lugar que os mapas nem acusam.

Conhecera-a há cerca de um mês, quando viu-a sair da missa com a mãe. Era domingo, um radiante dia de sol. Sim, aquele dia fora lindo, ele a conhecera. Aproximou-se dela, pensou em cumprimentá-la, a mãe puxou-a pelo braço, levou-a para casa. Desde então, a imagem daquela menina de quinze anos, de tranças e grandes olhos azuis, não mais lhe saiu da cabeça.

Todos os dias, ficava no banco da praça, vadiando, à espera da hora em que ela ia ou voltava da escola, cadernos debaixo do braço, andar de menina. Ao domingo, ansioso, esperava a hora da missa para vê-la em seu melhor vestido, as rendas, o chapéu, as botinas reluzentes a refletirem até o brilho do sol. Sempre recebia o olhar severo da mãe. Qualquer aproximação lhe era negada, moça de família não fala com vadios, dizia-lhe a mãe, enquanto puxava-a pelas mãos, apressadamente.

Um dia haveria de tê-la para si, e a teria para sempre, sem mãe ou qualquer pessoa que o impedisse. Ela fora destinada a ele; as escrituras assim rezavam. Ela estava à espera de seu Messias; e ele era o seu Messias (oh, os outros não sabiam disso!). Não se importava com os outros! Sabia que um dia ela seria sua; as escrituras não mentem jamais.

***

A lua clareia a sua face pálida; ele a admira. Admira também a moça ali a seus pés, amarrada, inerte, ela, deitada no chão, sem movimentos, sem gemidos (oh, ela nem mais respira!...). Só a lua pode testemunhar que, naquela noite, ela finalmente seria sua.

Assim rezavam as escrituras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário