Constância lavou nas mãos a marca de batom impressa no colarinho branco. A patroa era implacável quanto à brancura das roupas.
– Roupas finas se lavam à mão e não na máquina de lavar – dizia a patroa, de cara azeda.
A diarista anterior fora dispensada, entre vários desaforos, por não ter seguido à risca as orientações e por ter manchado uma blusa de seda indiana.
– Ela pensa que me engana! – ruminava Constância. – Dou um rim se esse batom for dela!... Não sou burra. Na penteadeira não tem nenhum batom dessa cor. Deve ser da outra...
Constância levantava todo dia às quatro da manhã. Preparava o café de Vadinho, fritava dois ovos para acompanhar o arroz que sobrara da janta. O companheiro trabalhava como servente de pedreiro na Ilha e não dava para almoçar em casa. Lavava no tanque as roupas encardidas dos seis filhos e uma das duas camisas que Vadinho usava para trabalhar. Cozinhava o almoço dos filhos para quando voltassem da escola.
Queria tanto poder almoçar com os seis! Mas não dava para voltar da cidade. Almoçava nas casas das patroas. Era sempre a última a comer. Às vezes não deixavam mistura para ela; às vezes deixavam, ela comia um pouco e juntava os restos num saquinho plástico.
– É pro cachorro! – explicava-se às patroas.
Não era. Não tinha cachorro, só um gato malhado. Os seis filhos adoravam as sobras, que comiam com muito gosto.
Saía de casa às seis e meia, levava os filhos à escola. Às quinze para as sete já estava na passarela. Vez ou outra se deparava ali com tipos esquisitos, que a observavam descaradamente. Segurava com força a bolsa debaixo dos braços.
“Esses malandros que não se metam a bestas comigo!”, pensava Constância, de lábios crispados e testa franzida. “Semana passada dei uns tapas num moleque sem-vergonha que tentou pegar a minha bolsa. Vagabundo! Rouba gente honesta pra comprar porcaria... Não levo dinheiro na bolsa, mas tenho os meus documentos. Imagina a trabalheira e o tempo pra tirar uma segunda via de tudo!”
Chegava às casas das patroas alguns minutos antes das sete. Nunca se atrasava. O serviço era muito, tinha que limpar e arrumar tudo e não conseguia ir embora antes das seis da tarde. Quando voltava à sua casa, a novela das seis já estava na metade. Mesmo assim, acompanhava todos os capítulos.
– Diversão de pobre é a novela da Globo – dizia. – Cinema, teatro, essas coisas são pra gente rica... Pobre fica em casa vendo novela.
Só assistia à novela das seis, ou à metade da novela. Passava o resto da noite arrumando a casa, varrendo, catando as coisas que os filhos deixavam espalhadas por toda a parte, regava a pequena horta que mantinha no fundo do pequeno quintal – uns pés de tomate, alface e salsinha. Ao lado da soleira da porta da cozinha ficavam uns vasos de comigo-ninguém-pode, guiné e espada-de-são-jorge.
– Neste mundo – dizia – a gente tem que se pegar com Deus e com o Diabo...
Deitava-se sempre por volta da meia-noite. Cansada, com dores pelo corpo, o espírito resignado. O companheiro, ao chegar da Ilha, não vinha direito para a casa. Parava no Bar do Olávio, que ficava perto da passarela. Tomava uma dose, tomava duas. Tomava mais uma e mais outra. Marcava no fiado. Por vezes um amigo, com alguma sobra no bolso, pagava uma saideira. Mas isso era coisa rara de acontecer. O grosso dos amigos quase sempre andava de bolsos e almas vazios. Muitos deles pescavam manjuba na Barra. Mas era época de defeso, o número de pescadores sempre crescia e a manjuba rareava cada vez mais. Outra parte dos amigos trabalhava como servente de pedreiro e recebia vale no sábado. O Bar do Olávio era parada obrigatória. Era dos poucos bares, talvez o único, que marcava o fiado em cadernetas.
– Se não fizer assim, eu fecho as portas – dizia ele à esposa.
– Um dia essa gente vai te deixar a ver navios – resmungava ela, no fundo do balcão.
À chegada de Vadinho em casa, Constância já estava adiantada no sono. No quarto dormiam também mais três filhos; os demais se apertavam na sala, que se repartia com a cozinha.
“Essa mulher ronca mais que um porco...”, pensava ele. “Qualquer dia eu dou um jeito nela... Ela pode dormir aí que nem uma madame, agora eu tenho que me rolar na cama ouvindo esse ronco a noite inteira... Ainda dou um jeito nela...”
Às quatro da manhã, Constância se levantava. Olhava para o lado. Vadinho roncava. O cheiro forte de álcool impregnava todo o quarto.
“Esse homem ronca mais que um porco... Um dia largo dele, pego as crianças e volto pra Minas...”, pensava Constância, enquanto catava as roupas de Vadinho jogadas ao pé da cama.
– Roupas finas se lavam à mão e não na máquina de lavar – dizia a patroa, de cara azeda.
A diarista anterior fora dispensada, entre vários desaforos, por não ter seguido à risca as orientações e por ter manchado uma blusa de seda indiana.
– Ela pensa que me engana! – ruminava Constância. – Dou um rim se esse batom for dela!... Não sou burra. Na penteadeira não tem nenhum batom dessa cor. Deve ser da outra...
Constância levantava todo dia às quatro da manhã. Preparava o café de Vadinho, fritava dois ovos para acompanhar o arroz que sobrara da janta. O companheiro trabalhava como servente de pedreiro na Ilha e não dava para almoçar em casa. Lavava no tanque as roupas encardidas dos seis filhos e uma das duas camisas que Vadinho usava para trabalhar. Cozinhava o almoço dos filhos para quando voltassem da escola.
Queria tanto poder almoçar com os seis! Mas não dava para voltar da cidade. Almoçava nas casas das patroas. Era sempre a última a comer. Às vezes não deixavam mistura para ela; às vezes deixavam, ela comia um pouco e juntava os restos num saquinho plástico.
– É pro cachorro! – explicava-se às patroas.
Não era. Não tinha cachorro, só um gato malhado. Os seis filhos adoravam as sobras, que comiam com muito gosto.
Saía de casa às seis e meia, levava os filhos à escola. Às quinze para as sete já estava na passarela. Vez ou outra se deparava ali com tipos esquisitos, que a observavam descaradamente. Segurava com força a bolsa debaixo dos braços.
“Esses malandros que não se metam a bestas comigo!”, pensava Constância, de lábios crispados e testa franzida. “Semana passada dei uns tapas num moleque sem-vergonha que tentou pegar a minha bolsa. Vagabundo! Rouba gente honesta pra comprar porcaria... Não levo dinheiro na bolsa, mas tenho os meus documentos. Imagina a trabalheira e o tempo pra tirar uma segunda via de tudo!”
Chegava às casas das patroas alguns minutos antes das sete. Nunca se atrasava. O serviço era muito, tinha que limpar e arrumar tudo e não conseguia ir embora antes das seis da tarde. Quando voltava à sua casa, a novela das seis já estava na metade. Mesmo assim, acompanhava todos os capítulos.
– Diversão de pobre é a novela da Globo – dizia. – Cinema, teatro, essas coisas são pra gente rica... Pobre fica em casa vendo novela.
Só assistia à novela das seis, ou à metade da novela. Passava o resto da noite arrumando a casa, varrendo, catando as coisas que os filhos deixavam espalhadas por toda a parte, regava a pequena horta que mantinha no fundo do pequeno quintal – uns pés de tomate, alface e salsinha. Ao lado da soleira da porta da cozinha ficavam uns vasos de comigo-ninguém-pode, guiné e espada-de-são-jorge.
– Neste mundo – dizia – a gente tem que se pegar com Deus e com o Diabo...
Deitava-se sempre por volta da meia-noite. Cansada, com dores pelo corpo, o espírito resignado. O companheiro, ao chegar da Ilha, não vinha direito para a casa. Parava no Bar do Olávio, que ficava perto da passarela. Tomava uma dose, tomava duas. Tomava mais uma e mais outra. Marcava no fiado. Por vezes um amigo, com alguma sobra no bolso, pagava uma saideira. Mas isso era coisa rara de acontecer. O grosso dos amigos quase sempre andava de bolsos e almas vazios. Muitos deles pescavam manjuba na Barra. Mas era época de defeso, o número de pescadores sempre crescia e a manjuba rareava cada vez mais. Outra parte dos amigos trabalhava como servente de pedreiro e recebia vale no sábado. O Bar do Olávio era parada obrigatória. Era dos poucos bares, talvez o único, que marcava o fiado em cadernetas.
– Se não fizer assim, eu fecho as portas – dizia ele à esposa.
– Um dia essa gente vai te deixar a ver navios – resmungava ela, no fundo do balcão.
À chegada de Vadinho em casa, Constância já estava adiantada no sono. No quarto dormiam também mais três filhos; os demais se apertavam na sala, que se repartia com a cozinha.
“Essa mulher ronca mais que um porco...”, pensava ele. “Qualquer dia eu dou um jeito nela... Ela pode dormir aí que nem uma madame, agora eu tenho que me rolar na cama ouvindo esse ronco a noite inteira... Ainda dou um jeito nela...”
Às quatro da manhã, Constância se levantava. Olhava para o lado. Vadinho roncava. O cheiro forte de álcool impregnava todo o quarto.
“Esse homem ronca mais que um porco... Um dia largo dele, pego as crianças e volto pra Minas...”, pensava Constância, enquanto catava as roupas de Vadinho jogadas ao pé da cama.
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